Existem processos neuronais que transformam a inexistência de estímulos sensoriais - o vazio - no conceito numérico abstracto a que chamamos zero
Na placa de Gwalior (Índia), datada de 876 d.C., o número "270" surge quase idêntico à sua representação actual SOCIEDADE AMERICANA DE MATEMÁTICA
Ao contrário dos números 1, 2, 3…, que contam objectos, “0” simboliza o vazio – e a sua invenção foi um dos maiores avanços intelectuais da humanidade. Os processos neuronais envolvidos nesta façanha cognitiva começam agora a ser desvendados.
O número zero, que representa o nada, a inexistência de algo, é fundamental para tudo o que fazemos, das contas do dia-a-dia à construção de naves espaciais, da matemática à física à engenharia e aos mais sofisticados algoritmos informáticos. Porém, a sua invenção é relativamente recente e demorámos séculos a perceber a sua real importância e a conseguir utilizá-lo como o número de pleno direito que é.
Como é que o nosso cérebro faz para transformar o nada, o vazio, nesse ubíquo número que todos conhecemos e que é representado, no nosso sistema numérico, pelo símbolo “0”? Uma equipa da Universidade de Tübingen, na Alemanha, acaba de dar um passo significativo na identificação das bases neuronais deste processo cognitivo.
Andreas Nieder e os seus colegas realizaram um estudo com dois macacos Rhesus que fornece, pela primeira vez, indicações concretas sobre “como e onde o cérebro traduz activamente a ausência de estímulos contáveis numa categoria numérica”, explica aquela universidade num comunicado. Os seus resultados foram publicados na revista Current Biology.
Mas será que os macacos Rhesus sabem contar? Sim, com treino – e se o número de objectos a contar não for demasiado grande. Acontece que as capacidades numéricas básicas não são exclusivas da espécie humana: sabe-se há várias décadas que muitas espécies animais possuem um “sentido de número” (ou seja, uma ideia aproximada da quantidade de objectos num dado conjunto, ou “numerosidade”). Experiências com ratos, por exemplo, mostraram que estes animais podem ser ensinados a distinguir entre a ocorrência de dois eventos e a de quatro.
“Ratos, pombos, papagaios, golfinhos e, claro, primatas, conseguem discriminar padrões visuais ou sequências auditivas com base apenas em propriedades numéricas (…) e também possuem capacidades elementares de adição e subtracção”, explicava, já em 1997, no então recém-criado think tank online Edge, o hoje reputado neurocientista Stanislas Dehaenne, professor do Collège de France, em Paris.
Contudo, isto não se compara à nossa capacidade mental de manipular símbolos numéricos: “São precisos anos de treino para incutir os símbolos numéricos aos chimpanzés (…). A manipulação simbólica exacta de números é uma capacidade exclusivamente humana”, acrescentava Dehaenne.
Uma longa saga
A história do zero merece ser contada. É uma história atribulada que dá a volta ao mundo, numa longa viagem de séculos, protagonizada por brilhantes matemáticos de vários continentes.
Mas, antes disso, há uma pergunta que há muito vem sendo colocada: os números, incluindo o zero, foram “descobertos” – porque já existiam na natureza – ou “inventados” por nós? A maioria dos especialistas concorda hoje em dizer que os números foram descobertos, que não são uma pura criação da mente humana.
E quando é que o zero foi descoberto? Aí, a resposta pode parecer paradoxal: foi sem dúvida descoberto há muitos séculos, mas a sua natureza profunda só muito mais tarde seria plenamente compreendida e “domada” pela mente humana.
A primeira manifestação do zero de que há registo surgiu há uns 4000 a 5000 anos na Suméria, sob forma de um par de marcas cuneiformes, afirmava em 2009, na revista Scientific American, o matemático Robert Kaplan, autor do livro The Nothing That Is: A Natural History of Zero.
Pelo seu lado, Charles Seife, autor do livro Zero: The Biography of a Dangerous Idea, (editado em Portugal pela Gradiva sob o título Zero, Biografia de uma Ideia Perigosa), não acredita nesta datação tão antiga. “Houve pelo menos duas descobertas, ou invenções, do zero”, explicava no mesmo artigo. “A que chegou até nós veio do Crescente Fértil [que incluía Suméria e Babilónia]” e apareceu entre 400 e 300 a.C. na Babilónia.
A seguir, o zero terá passado da Babilónia para a Índia e para os países árabes do Norte de África antes de atravessar o Mediterrâneo e entrar na Europa. Entretanto, também se espalhara para o Médio Oriente e o Extremo Oriente. Quanto à segunda descoberta do zero – e nisso todos concordam –, foi obra dos Maias, na América Central, aconteceu de forma totalmente independente do resto do mundo e nunca chegou a sair do continente americano.
No início, o zero (nas suas diversas formas) era um símbolo utilizado, nos sistemas numéricos como o babilónico – onde o valor de cada dígito num número depende da sua posição (equivalente às nossas unidades, dezenas, centenas… –, para assinalar que, numa dada posição, não havia qualquer dígito, só um espaço vazio. Este uso do número zero é crucial, uma vez que permite resolver incómodas ambiguidades que, no nosso sistema numérico, se traduziriam, por exemplo, na impossibilidade de distinguir 216 e 2016.
Contudo, o número zero não era ainda totalmente incontornável na ciência e tecnologia da época: os antigos gregos conheciam-no mas quase não o utilizavam, mas isso não os impediu de inventar a geometria; e o sistema numérico romano não tinha zero (o que dificultava em particular a divisão), mas isso não impediu a construção de grandes obras de engenharia.
Número de pleno direito
Seja com for, foi na Índia, há menos de 1500 anos, que o zero começou a tornar-se um número de pleno direito. “Foi nessa altura – e mesmo assim, não totalmente – que o zero adquiriu a cidadania plena na república dos números”, salienta Kaplan, no referido artigo da revista norte-americana.
“Aquilo que podemos afirmar com certeza é que, por volta do século VII d.C., o zero já era utilizado na Índia com o duplo significado actual, enquanto número e enquanto valor posicional”, diz ao PÚBLICO Jorge Buescu, matemático da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática. “A primeira ocorrência registada de zero que nos chegou é numa placa exterior num templo indiano em Gwalior, na Índia, que data de 876 d.C.”, acrescenta. “É quase arrepiante ver, numa inscrição indecifrável, surgir os algarismos que ainda hoje utilizamos – em particular o ‘0’ com a utilização moderna.”
Mas a questão é que o zero é um número tão especial e tão contra-intuitivo que, apesar de existir como número e como valor posicional, ninguém sabia fazer contas – adições, subtracções e ainda menos multiplicações e divisões – que envolvessem o zero. Sabia-se que 1+1=2. Mas e 1+0?
“Foram os matemáticos indianos quem estabeleceu as propriedades algébricas do zero”, explica-nos Jorge Buescu. “Pode parecer-nos natural hoje; mas foi seguramente muito estranho olhar pela primeira vez para um número pelo qual era impossível dividir.” E no século IX, "um dos maiores matemáticos árabes, Al-Kwharizmi, escreveu um tratado sobre a ‘arte hindu de efectuar cálculos’”, frisa ainda o matemático português – estendendo assim o uso do zero da aritmética para a resolução de equações (o ramo da matemática a que hoje chamamos álgebra). Os árabes chamaram-no “sifr”, palavra que daria origem a “zero” e “cifra”.
O zero entraria no Ocidente pela Itália, no século XIII, importado pelo matemático Fibonacci, também conhecido como Leonardo de Pisa, que o trouxe – bem como todo o sistema numérico árabe (na realidade indiano) – das suas viagens ao Norte de África. Mas só no século XVII é que o seu uso começou a generalizar-se na Europa.
Contas de macacos
Voltando ao trabalho agora realizado em Tübingen, os neurocientistas treinaram dois macacos Rhesus a avaliar a “numerosidade” de conjuntos de pontos que surgiam num ecrã de computador. Ensinaram-nos a diferenciar visualmente um conjunto vazio (ou seja, com zero elementos), um conjunto com um elemento e conjuntos com dois, três e quatro elementos.
Ao mesmo tempo que os macacos executavam esta tarefa visual de discriminação numérica, os cientistas registaram a actividade neuronal em duas áreas do cérebro dos animais, situadas no lobo parietal e no lobo frontal do córtex. A segunda área recebe informação da primeira e os cientistas já sabiam, com base em estudos anteriores, que as duas regiões em causa (designadas VIP e PFC) desempenham um papel fulcral no processamento das quantidades.
Os autores constataram então que as duas regiões cerebrais em causa tinham comportamentos totalmente diferentes. “Os neurónios no lobo parietal representavam os conjuntos vazios mais como uma categoria visual – e portanto não abstracta –, diferente da numerosidade”, disse ao PÚBLICO Andreas Nieder, o líder do estudo. “Pelo contrário, [a actividade] dos neurónios no lobo frontal apresentava duas características distintivas das representações quantitativas: posicionava os conjuntos vazios em relação às outras numerosidades (…) e era independente das propriedades dos estímulos visuais.”
“Os nossos resultados”, explica ainda Nieder, “sugerem que há um processamento hierárquico dos conjuntos vazios de uma região para a outra, ao longo do qual os conjuntos vazios se desligam dos sinais visuais e são integrados num contínuo de numerosidade”. Tudo se passa, por assim dizer, como se os neurónios da segunda área cerebral dos macacos passassem a colocar o “zero” no início de uma “linha de números” mental abstracta.
“Estes animais possuem a capacidade de conceber conjuntos vazios como sendo uma categoria quantitativa”, salienta Nieder. “E visto que o cérebro evoluiu para processar estímulos sensoriais, o facto de ser capaz de conceptualizar os conjuntos vazios constitui um feito extraordinário”, acrescenta.
E conclui: “O nosso estudo fornece o primeiro sinal do processo que o cérebro utiliza para formular conceitos [numéricos] sem relação com a experiência, para além do que é percepcionado – o que é indispensável para construir uma teoria complexa dos números. E este processo poderá constituir a raiz neurobiológica da capacidade humana de descobrir (ou inventar) o zero e transformá-lo num verdadeiro número.”
Evolução cultural
Não é por acaso que o zero tal como o concebemos hoje demorou tanto tempo a ser realmente compreendido pela mente humana. É que, para lá chegar, tivemos por exemplo de aceitar (como já mencionado por Jorge Buescu) que não era possível dividir por zero. De facto, a matemática do zero só ficou completa no século XVII, com a invenção, por Isaac Newton e Gottfried Leibniz, do chamado cálculo infinitesimal, um ramo da matemática essencial à física.
Uma outra prova da dificuldade conceitual associada à nossa noção actual de zero é que as crianças demoram anos a perceber do que se trata. “As crianças têm, primeiro, de perceber que o zero representa uma quantidade vazia – capacidade, essa, que desenvolvem durante o quarto ano de vida”, diz-nos Nieder. “E é por volta dos seis anos que, finalmente, percebem a relação entre o zero e os outros números pequenos – e que o zero é o mais pequeno de todos os números inteiros.
“A compreensão do zero requer um alto nível de abstracção, uma vez que, enquanto número, o zero transcende a experiência empírica”, explica ainda Nieder. “E é interessante constatar que os vários usos do zero ao longo da história reflectem estados mentais (níveis de abstracção) diferentes, que podem ser identificados na cultura humana ao longo do tempo.”
Para Stanislas Dehaenne, foram aliás a cultura e a educação – e não a evolução – que, ao longo da nossa história, permitiram que o cérebro humano atingisse os níveis de abstracção que lhe conhecemos e que se cristalizaram, em particular, na matemática moderna.
“Essencialmente, herdámos da evolução apenas um sentido rudimentar de número, que partilhamos com outros animais e que até os bebés possuem aos poucos meses de vida”, explicava Dehaenne (autor do livro The Number Sense) numa entrevista em 2009 à Scientific American. “É aproximativo e não simbólico (…), mas deu-nos no entanto o conceito de número e nós a seguir aprendemos a estendê-lo com símbolos culturais (como os dígitos) e fazer aritmética de maneira muito mais precisa.”
fonte: Público