Histórias do outro mundo e de outros tempos.
A alma penada de uma costureira de Torres Novas cuja máquina se fez ouvir por todo o país, a dupla portuense que apaixonou o Congresso Espiritualista de Paris e a moda das mesas girantes que originou polémicas acintosas nos jornais da época são alguns dos insólitos episódios narrados por Joaquim Fernandes no segundo volume da História Prodigiosa de Portugal.
Depois dos Mitos & Maravilhas dos séculos XII a XVIII chega agora a vez das Magias & Mistérios dos séculos XIX e XX, ambos editados pela Verso da História. «São os quatro M que compõem a História do Inconsciente Coletivo Português. É a história na sua profundidade máxima porque tem que ver com as nossas crenças, as superstições básicas que nos movem», diz Joaquim Fernandes, professor universitário e cofundador do Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência da Universidade Fernando Pessoa. As principais fontes foram os jornais da época que então conheciam um dos seus mais vibrantes períodos. Os fenómenos mágicos e misteriosos foram um rastilho fácil para explosivas querelas epistolares repletas de sarcasmo e ironia. O Jornal de Notícias e O Século, jornais populares e regeneradores, amplificavam e destacavam os eventos inexplicáveis. Já A Província e O Primeiro de Janeiro, marcadamente progressistas e positivistas, asseguravam o primado da ciência. Por fim, A Palavra e A Nação, da Igreja Católica, repudiavam tudo o que afrontasse os seus dogmas. Um fenómeno em concreto colocaria todos em confronto.
«Quando chegam a Portugal, em 1853, as mesas girantes animam sobretudo os estratos burgueses e aristocráticos», conta Joaquim Fernandes. O divertimento, como era então encarado, consistia em reunir várias pessoas com as mãos no tampo de uma mesa de pé-de-galo à espera que esta se mexesse. «Alguns dos nossos mais ilustres homens da ciência como José Vicente Barbosa du Bocage ou Latino Coelho vão debruçar-se sobre o tema e tentar encontrar uma explicação para os fenómenos anunciados.»
A loucura das mesas chega a tal ponto que algumas sessões das Cortes Gerais ficam quase vazias. É que Francisco Margiochi, Par do Reino e secretário das Cortes, promovia jogos de mesas girantes no seu gabinete e era lá que todos queriam estar. «Naquela fase, as mesas eram um entretenimento puro, como jogar às cartas. Ia-se para clubes e cafés, como o Martinho da Arcada ou o Marrarre, jogar às mesas girantes.»
Porém, nas décadas finais do século XIX, após a Codificação Espírita de Alan Kardec, as mesas adquirem a fama de «promover o contacto com o outro lado. Todos querem comunicar com os espíritos de entes vérsia sobre a legitimidade ou o ridículo desta prática e uma reação violentíssima da Igreja e da imprensa mais positivista», com acusações de «envenenamento do povo» pela «seita de Kardec» e por «especuladores espiritistas» que se aproveitam de «cabeças desnorteadas».
A dupla portuense que encantou Paris
Mesmo com a forte oposição católica, os assuntos espíritas apaixonavam Portugal. Exemplo disso são os muitos relatos do I Congresso Espírita e Espiritualista, em Paris, que, em setembro de 1900, juntou 80 mil espíritas e estudiosos e onde brilharam o advogado Sousa Couto e a médium Marinha Correia.
O jurista portuense relatou como a medium, natural da Foz do Douro, «dava autógrafos completos e seguros de pessoas falecidas como o rei D. Luís, Castilho, Mouzinho da Silveira, etc.». E também «obtivera comunicações em línguas que esta senhora desconhece por completo, como é o árabe».
Mas, mais impressionante ainda, ela disporia do dom da «visão à distância», conseguindo «percorrer sucessivamente os planetas Júpiter, Saturno, Marte e Úrano, descrevendo-os com dados superiores aos recursos dos seus conhecimentos». A dupla fez tanto sucesso que, findo o congresso, permaneceu em França, concedendo sessões privadas a altas personalidades, dando autógrafos de Vítor Hugo e Napoleão e desencadeando «luminosas fosforescências vistas por todos», relatava, à época, o JN. Estes feitos foram logo contestados pelos jornais positivistas e católicos. O cronista Rigoletto, da Voz Pública, reagia sarcasticamente ao deslumbramento: «O facto de ter uma visão planetária coloca essa predestinada dama à altura do mais aperfeiçoado instrumento ótico. Com efeito, se ela possui esse inesperado dote, fechem-se desde já todos os observatórios do país e fique S.ª Ex.ª encarregada de fazer em sua casa todos os boletins.»
O livro cita vários deliciosos excertos de artigos e crónicas, estocadas na forma escrita, que, num duelo a três, ficariam para a história. Joaquim Fernandes considera mesmo que, «sob o olhar crítico de Sampaio Bruno, o triângulo impresso Jornal de Notícias – A Província – A Voz Pública, testemunhou desta sorte, na «bela época» nortenha, um vasto e precioso cadinho de puras crenças, emoções à flor da pele e positivismo cego. Um retrato ao vivo, flagrante e inesperado, de um Porto burguês, febrilmente apostado em ligar-se ao «outro mundo».
A costureira viral
Graças ao poder massificador da imprensa periódica, que relatava sem pudores os «fenómenos inexplicáveis», o fascínio pelo oculto espalhou-se por todo o país. O enigma da costureira – para o autor «o mais intrigante caso de histeria auditiva de massas sucedido em Portugal» – seria o melhor exemplo dessa brutal disseminação.
O caso surge pela primeira vez a 1 de Setembro de 1920 n’ O Século, que relata «o misterioso fenómeno que há uns tempos se faz notar nesta povoação [Meia Via, Torres Novas], o qual e segundo os espíritos mais supersticiosos é atribuído a uma alma penada de uma costureira que, em vida e quando de uma doença que a ia vitimando, prometera uma máquina de costura à Virgem Mãe de Deus caso a salvasse da enfermidade, promessa que não cumpriu e que agora expia andando de casa em casa, de terra em terra». Por isso, ouvir-se-ia «um ruído semelhante ao de uma máquina de costura», não só «em casa de gente religiosa ou supersticiosa mas também na de ateus e materialistas irredutíveis». O jornal garantia que já teria havido réplicas no Entroncamento, Golegã, Riachos, Chamusca, etc. Mas a costureira não iria ficar só pelo distrito de Santarém.
A 14 de setembro, o JN titulava: «Um fenómeno sensacional. O caso da costureira de Torres Novas sucede igualmente no Quartel do Carmo do Porto. Trata-se de um facto misterioso que ninguém sabe explicar com exatidão.» Seis dias depois, O Século voltava à carga noticiando anteriores aparições na capital: «Deste mundo ou do outro? A costureira em Lisboa. Manifestou-se há três meses em casa de um comerciante da Rua do Carmo.» A disseminação ganha contornos imparáveis. «Hoje, chamar-lhe-íamos viral», diz Joaquim Fernandes. Aos diários chegam testemunhos de audições da máquina da costureira do Minho ao Algarve. Na imprensa avançam-se explicações para o insólito ruído, que vão das teses psíquicas às alterações digestivas. O caso conhece o seu expoente máximo a 27 de setembro quando milhares se juntam em torno do marco postal da Ilha dos Galegos, em Lisboa, onde, alegava O Século, a máquina da costureira deveria soar às 13.00. Porém, nada se escutou. Na edição seguinte, o jornal confessava que tudo não tinha passado de uma «blague jornalística» para mostrar «até que ponto pode ser levado o poder da sugestão». Todavia e mesmo após a revelação do embuste, a lenda da costureira persistiu até hoje na memória de inúmeras localidades de norte a sul do país.
Um dos aspetos mais interessantes do livro é a revelação do modo como a comunidade científica se interessou e estudou estas Magias & Mistérios. Por exemplo, a primeira abordagem nacional ao Magnetismo Animal – o atual Hipnotismo Clínico – ocorre na Universidade de Coimbra. A prática vai entusiasmar os lentes e mais ainda os estudantes que «diligentemente vão tentar hipnotizar as prostitutas da cidade para que estas lhes relatem os pormenores mais escabrosos das suas atividades», conta Joaquim Fernandes.
Também relativamente ao espiritismo, em 1900, houve «uma tentativa muito séria de, através de processos físicos, confirmar se estávamos ou não na presença de uma efetiva transposição do plano do astral para o plano terminacional», diz o professor. Porém, esses estudos foram sendo abandonados e, com a instauração do Estado Novo e consequente perseguição, os fenómenos e cultos espíritas quase desapareceram das ruas e da memória, apenas permanecendo em lendas e no fundo dos arquivos dos jornais.
Aceitar tudo, mas não acreditar em nada
Joaquim Fernandes queixa-se de que «do ponto de vista da historiografia, tem havido muito pouco trabalho sobre estas áreas mais profundas da história». Por isso defende que «estas temáticas devem ser tomadas a sério e devem ser tratadas dentro das paredes da Academia». Pela sua parte, o professor faz o que pode, por exemplo, com a sua tese de Doutoramento em História das Ciências: O Imaginário Extraterrestre na Cultura Portuguesa – do fim da Modernidade até meados do século XIX. Esta foi a primeira abordagem académica sobre a temática em toda a Europa e foi publicada em 2014, com o título Moradas Celestes, na Âncora Editora.
Entre os seus trabalhos destacam-se ainda três livros, em colaboração com a colega docente Fina D’Armada, sobre as aparições de Fátima. Neles, os autores levantam a hipótese de que, em 1917, os três pastorinhos, na realidade, não avistaram Nossa Senhora, mas sim uma entidade extraterrestre, um ovni (objeto voador não identificado). Porém, a Igreja Católica e, depois o Estado Novo, apropriar-se-iam e reinterpretariam as aparições para a sua própria promoção.
Brevemente, Joaquim Fernandes irá publicar um terceiro volume sobre a História do Inconsciente Coletivo Português. Chamar-se-á Portugal Misterioso e abordará mais aspetos mitológicos, inclusive desde a pré-história. «É importante manter vivo este espírito crítico e uma abordagem académica porque, sendo postas do lado da barreira não académica, estas coisas correm sempre o risco de serem alteradas, manipuladas, transformadas em pequenas religiões, em pequenas seitas, e distorcidas até em termos do aproveitamento comercial», justifica Joaquim Fernandes.
Daí também a importância do Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência da Universidade Fernando Pessoa, que dirige. «Cabe lá tudo o que seja o desconhecido ou o menos conhecido, mas sempre numa perspetiva de crítica distanciada. Não assumimos nada por adquirido. Até porque temos a consciência de que num conjunto lato de questões ainda estamos na fase da pré-história do conhecimento, e assim continuaremos. A nossa ideia é: aceitamos tudo mas não cremos em nada.»
fonte: Noticias Magazine