Crânio da vaca com cerca de cinco mil anos
O crânio de uma vaca que viveu no período Neolítico é agora considerado como a primeira prova de experimentação cirúrgica num animal. Resta a dúvida se a operação era para salvar a vaca ou para praticar a técnica de trepanação já usada nos humanos.
Há mais de 30 anos, em escavações num sítio arqueológico do período Neolítico, na actual França, foi encontrado um crânio de uma vaca. Tinha um buraco e logo se pensou que teria sido causado pela cornada de outra vaca. Dois cientistas de França fizeram agora uma análise mais detalhada a esse buraco e sugerem que foi provocado por uma cirurgia. Esta será assim a primeira prova de experimentação cirúrgica num animal.
Situado no Oeste de França, o sítio arqueológico de Champ-Durant era uma povoação fortificada de agricultores do final do Neolítico, entre 3400 a.C. e 3000 a.C. Portanto, essa experiência num animal terá acontecido entre há cerca de 5000 e 5400 anos. “O principal objectivo deste sítio era proteger o gado de vários predadores. Este tipo de povoação era abundante nesta região e neste período”, conta Fernando Ramirez Rozzi, da Faculdade da Medicina Dentária de Montrouge (França), e um dos autores do artigo científico publicado esta quinta-feira na revista Scientific Reports. “Essa sociedade baseava-se na pecuária e os bovinos são os principais vestígios da fauna no sítio”, adianta Fernando Ramirez Rozzi ao PÚBLICO.
Foi então neste sítio que se descobriu um crânio quase inteiro de uma vaca (faltava uma parte da maxila e as extremidades dos cornos) durante escavações entre 1975 e 1985. Na altura, viu-se logo que esse crânio tinha um buraco na parte direita do osso frontal e quis saber-se qual seria a causa. Análises ao tal buraco sugeriram que teria sido provocado por uma cornada de outra vaca.
Foto Marcas deixadas pela trepanação FERNANDO RAMIREZ ROZZI
Não convencido com esse resultado, em 2012 o director dessas escavações pediu a Fernando Ramirez Rozzi e a Alain Froment (do Museu do Homem, em Paris) que examinassem de novo o buraco no crânio.
Os dois cientistas observaram-no ao pormenor através de microscópio electrónico de varrimento. “O crânio da vaca tinha as mesmas marcas apresentadas por um crânio humano que tenha sido submetido a uma trepanação [cirurgia em que se faz uma perfuração no crânio]”, indica Fernando Ramirez Rozzi. “As marcas à volta do buraco revelam a técnica típica de trepanação muito usada no período Neolítico. Essas marcas são semelhantes nos crânios da vaca e de um humano.”
Osso não cicatrizou
Desde o Mesolítico (aproximadamente 10.000 a.C. a 5000 a.C.) que há provas de trepanação em humanos. A mais antiga que se conhece num crânio humano com 9300 anos encontrado no sítio arqueológico de Vasilyevka, no Azerbaijão. Em França, acrescenta Fernando Ramirez Rozzi, o registo mais antigo data de 5100 a.C., na Alsácia.
Independentemente das razões que nos levavam a praticar a trepanação (motivos religiosos ou de saúde, o que dependia das sociedades e dos períodos históricos), na pré-história já dominávamos esta técnica. “O crânio mais antigo [humano] com provas de trepanação já revelava o uso das mesmas técnicas usadas tempos históricos com o mesmo grau de precisão”, lê-se no artigo.
Não se sabe bem como se treinava e praticava a trepanação em humanos, segundo os autores: podia ser em crânios de pessoas já mortas (mas desconhece-se se resultaria) ou em animais. Contudo, é raro encontrar crânios completos de animais nos sítios arqueológicos. Muitos ficaram partidos depois de retirar a carne para alimentação. Há um crânio de javali – talvez do Neolítico – que mostra sinais de uma cirurgia e agora há o crânio da vaca de Champ-Durant.
Como tal, os cientistas consideram agora o crânio desta vaca como a prova mais antiga de uma trepanação num animal. E apontam duas hipóteses para o motivo da cirurgia. Pode ter sido realizada para curar a vaca ou para treinar nela a técnica de trepanação que depois seria aplicada nos humanos. “Se a cirurgia ao crânio observada na vaca foi feita para salvar o animal, então Champ-Durant dá-nos a primeira prova de uma cirurgia veterinária. Por outro lado, se a trepanação era usada para praticar técnicas, a vaca de Champ-Durant poderá dar-nos a primeira prova de uma experimentação cirúrgica num animal, indicando que esta prática já existia em 4000 a.C.”, concluem os cientistas.
E, já agora, o que aconteceu a esta vaca depois da cirurgia? Observando pelo microscópio, os cientistas verificaram que o osso não cicatrizou. Por isso, Fernando Ramirez Rozzi sugere: “Ou a trepanação foi feita quando a vaca já estava morta ou ela não sobreviveu à cirurgia.”
fonte: Público