Estudo genético mostra que os cruzados europeus dos séculos XII e XIII se misturaram com a população do Médio Oriente, mas que essa herança foi apenas temporária. Ela não se manifesta hoje no perfil da população.
Chegaram, não venceram, e o rasto genético que por lá deixaram rapidamente se esfumou, diluído no decurso das gerações. Em poucas palavras, este poderia ser o relato atualizado das campanhas militares que durante quase dois séculos, entre 1095 e 1270, os reis europeus promoveram a Jerusalém, e que ficaram na História como as Cruzadas. É isso que mostra um novo estudo genético, feito a partir de um achado raro de esqueletos da época e que acaba de ser publicado na revista científica The American Journal of Human Genetics.
A pergunta acerca do verdadeiro impacto genético nas populações locais desse movimento guerreiro protagonizado pelos cavaleiros religiosos europeus de há quase mil anos, andava há muito no ar - mas sem resposta conclusiva. Estudos de genética relativos à população atual no Médio Oriente não mostram sinal desse episódio que durou quase 200 anos. E para se ter a certeza, seria preciso fazer estudos de genética antiga, encontrar os esqueletos desses antigos cavaleiros, estudá-los e fazer comparações. Mas onde encontrá-los?
A descoberta recente de mais de 25 esqueletos enterrados num poço, em Sidon, no Líbano, que veio a verificar-se corresponderem a essa época (século XIII) e a esse episódio histórico - os esqueletos mostram lesões e mutilações que correspondem a sinais de uma batalha brutal, e artefactos europeus da época - ofereceram aos cientistas uma ocasião única para deslindar o enigma e um grupo liderado por Chris Tyler-Smith, do Welcome Sanger Institute, no Reino Unido, e cujo principal autor foi Marc Haber, do mesmo instituto, não deixou fugir a oportunidade.
Os esqueletos de cruzados encontrados no Líbano © Claude Doumet-Serhal/American Journal of Human Genetics
A equipa, que contou também com participação do investigador português Rui Martiniano, também do Sanger Institute, sequenciou os genomas de nove dos 25 indivíduos sepultados no poço de Sidon, e descobriu sinais de os cruzados, ou pelo menos parte deles, se misturaram com as mulheres locais, embora a sua herança genética não tenha perdurado até hoje, através das gerações.
Os genomas sequenciados mostraram uma grande diversidade naqueles indivíduos, que pertenciam já às últimas fases das cruzadas. "Três dos genomas tinham um ADN mais europeu, quatro eram do Médio Oriente e os outros dois eram uma mistura de ambos", conta Rui Martiniano, que fez a análise de variantes de mutações raras, que têm uma maior capacidade para ajudar a identificar certos processos de misturas populacionais.
Os três europeus, além disso, eram de origens diversas, incluindo um da Península Ibérica e outro da Sardenha. Os dois que apresentaram a mistura genética europeia e do Médio Oriente, sugerem os investigadores, seriam já resultado de cruzamento anterior de europeus com locais. O facto de aquela ser já uma fase tardia das cruzadas reforça essa ideia.
"Os nossos resultados dão-nos uma imagem sem precedentes da ancestralidade destas pessoas que lutaram lado a lado nos exércitos de cruzados e que não eram só europeus", explica Marc Haber, sublinhando que "se observa na época medieval uma diversidade genética excecional no Médio Oriente, com a presença de europeus, de locais e de indivíduos que são uma mistura dos dois, e que combateram lado a lado, e morreram lado a lado".
Para poder fazer outras comparações, a equipa sequenciou igualmente o genoma de quatro esqueletos descobertos no Líbano, mas mais antigos, datados da época romana. E o que descobriram foi que o perfil genético atual da população local se assemelha sobretudo a estes, da época romana, mostrando que a mistura ocorrida posteriormente, durante as cruzadas acabou por não deixar marca.
Esse é um dado importante, também, porque indica que poderá haver outros períodos da História com movimentos populacionais que acabaram por não deixar uma marca genética hoje detetável e só será possível identificar fazendo estudos de genética antiga.
"Os nosso dados sugerem que vale a pena olhar para genomas antigos, mesmo de períodos em que pareça que não estava a acontecer nada de especial a nível populacional", sublinha o coordenador do estudo, Chris Tyler-Smith. A História, diz o investigador, "pode estar cheia destes episódios de permutas genéticas transitórias que depois desaparecem sem deixar rasto", e só fazendo este tipo de estudos é possível detetá-los.
fonte: Diário de Noticias