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O chacal-dourado de África é afinal… um lobo

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Lobo-dourado-africano fotografado numa expedição do CIBIO ao Senegal
CIBIO/RAQUEL GODINHO





Lobos-dourados-africanos fotografados numa expedição do CIBIO ao Senegal
CIBIO/RAQUEL GODINHO


Confundido durante séculos com o chacal-dourado, o lobo-dourado-africano é uma espécie com uma linhagem distinta há 1,3 milhões de anos. Mas só agora foi “descoberta”. Há 150 anos que não se identificava um canídeo em África.

Esta é a história de como o lobo-dourado-africano “enganou” historiadores naturais e cientistas durante quase quatro séculos. E de como um novo estudo, do qual fizeram parte quatro investigadores portugueses, vem obrigar museus de todo o mundo a reclassificar o canídeo que habita o continente africano. O chacal-dourado de África é afinal um lobo, e há um milhão de anos distinguiu-se como uma espécie independente.

“Tudo isto foi surpreendente. Primeiro, porque em África não há lobos-cinzentos [Canis lupus] e depois porque o chacal-dourado, agora identificado como lobo-dourado-africano, é próximo mas diferente do lobo-cinzento”, diz ao PÚBLICO Raquel Godinho, responsável pela equipa do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBIO) da Universidade do Porto, que participou no estudo. “O mais incrível foi descobrir a existência de um lobo em África e o que isso implicava: uma entidade taxonómica até aí desconhecida.”

O chacal-dourado foi classificado como espécie em 1758 por Lineu e pensava-se ser o canídeo que habita as zonas do Norte e Leste de África. Mas afinal não é assim. Cientistas e historiadores naturais que até agora visitaram África foram ludibriados pelas semelhanças morfológicas entre duas espécies distintas: o já classificado chacal-dourado (Canis aureus) e o lobo-dourado-africano (Canis anthus), a nova espécie identificada.

“É importante dizer que não se trata de uma descoberta, mas de uma reclassificação”, sublinha Raquel Godinho. O lobo-dourado-africano foi agora distinguido como uma nova espécie, mas o canídeo habita os países do Norte e Leste do continente africano conhecido como chacal-dourado desde a classificação de Lineu. “Temos provas absolutamente consistentes de que estas duas espécies representam linhagens muito distintas e separadas há 1,3 milhões de anos.”

O estudo publicado na última quinta-feira na revista Current Biology foi liderado pela equipa portuguesa do CIBIO em conjunto com outras duas equipas norte-americanas do Instituto Smithsonian, em Washington, e da Universidade de Califórnia, em Los Angeles. O interesse dos investigadores surgiu a partir dos resultados de dois estudos anteriores independentes. Estes estudos sugeriram que o ADN mitocondrial (aquele que é transmitido apenas por linha materna) do chacal-dourado de África era mais próximo do lobo do que era o ADN mitocondrial do chacal-dourado da Eurásia, podendo a espécie africana tratar-se de uma entidade dita “críptica” (que não se diferencia morfologicamente de outra).

Estes resultados anteriores associados à ideia que sugeria que os chacais do Egipto eram uma subespécie do lobo-cinzento pela diferença em tamanho que apresentavam dos chacais da Eurásia serviram de motivação para o recente estudo que provou definitivamente existir uma espécie diferente.

“Com estas curiosidades partimos para duas hipóteses: ou existiam duas espécies diferentes em África, o chacal-dourado e outra ainda não identificada, ou existia apenas uma espécie: o chacal-dourado mas com diferenças morfológicas entre as várias populações”, explica Raquel Godinho. E a primeira foi a que estava correcta.

Viagens a África e ao genoma

A dez anos de recolha de amostras seguiram-se dois para análise do material. O grupo de investigação da biologia dos animais do deserto do CIBIO, liderado por José Carlos Brito, cientista também envolvido no estudo, tem hoje um banco de dados que resultou dos vários anos de expedições em África. Raquel Godinho e Francisco Álvares, também autor do estudo, estiveram há um ano no Senegal onde recolheram mais amostras de animais mortos. Pedro Silva, especialista em análise de genomas, reuniu o material recolhido pelos colegas para proceder à sua análise.

O conjunto extenso de material genético envolveu ADN mitocondrial (muito usado em estudos de parentesco por provir exclusivamente da linha materna), autossomas (cromossomas não ligados ao sexo), cromossomas sexuais e sequências completas de ADN nuclear (presente no núcleo da célula). Em análise estiveram o chacal-dourado euroasiático, o suposto chacal-dourado de África e o lobo-cinzento.

O ADN mitocondrial de “chacais” do Quénia, Mauritânia e Marrocos (o africano) apresentou uma grande proximidade com o ADN mitocondrial do lobo-cinzento e não com os chacais de Israel (o euroasiático). Os cromossomas sexuais evidenciaram diferenças entre os chacais de ambos os locais (África e Eurásia), que ficaram comprovadas na análise às sequências completas de ADN nuclear. “O mais impressionante é que os chacais-dourados da Eurásia e os de África foram os que mais divergiram entre si”, lê-se no artigo.

Através de medições, a equipa foi ainda capaz de identificar diferenças morfológicas que escapavam a olho nu. Os ossos do crânio e a dentição dos chacais apresentam distinções no tamanho que surpreenderam os investigadores não tanto por haver uma diferença, mas mais pelo grau que esta apresentou. “Para a divergência que as duas espécies têm [cerca de 1,3 milhões de anos] deveria haver mais diferenças entre elas”, diz Raquel Godinho.

Em biologia, trata-se de um caso de paralelismo evolutivo. O fenómeno acontece quando duas espécies distintas, com evoluções separadas, foram capazes de manter uma morfologia semelhante. E foi isto que até agora induziu em erro todos os que se propuseram a estudar o canídeo de África. Uma explicação pode encontrar-se na competição trófica entre espécies. A luta entre o lobo e o chacal pelo mesmo alimento (presas pequenas) fez com que não evoluíssem para outras formas por não existir uma necessidade adaptativa.

“Do chacal-dourado da Eurásia, a divergência do ‘chacal’ de África era clara, mas também não era uma subespécie do lobo-cinzento [Canis lupus], pois tinham uma divergência de um milhão de anos”, diz Raquel Godinho. “As provas mostravam que se tratava de uma única entidade biológica, que merecia reconhecimento enquanto espécie diferente.”

O Canis anthus (lobo-dourado-africano) é muito comum e abundante na natureza, constituindo mesmo uma praga em diversas regiões, pelos prejuízos que causa na agricultura e na criação de gado. O animal distribui-se pela zona do Norte de África em países como o Senegal, a Mauritânia, Marrocos e Nigéria; e no Leste do continente, principalmente no Quénia e no Egipto. O nome recebeu-o da antiga subespécie de chacal-douradoCanis aureus anthus, a primeira a ser classificada em África por Georges Cuvier em 1820, e que agora é elevada a espécie como lobo.

De 35 para 36 canídeos

“Esta representa a primeira descoberta de uma ‘nova’ espécie de canídeo em África nos últimos 150 anos”, sublinha, em comunicado de imprensa, Klaus-Peter Koepfli, investigador do Instituto Smithsonian e um dos autores do estudo.

Mas como chegou então o lobo a África? “Todas as espécies se movimentam e ocupam outros territórios. Também nós, enquanto espécie, saímos de África e invadimos todo o planeta”, explica Raquel Godinho. “Os canídeos saíram de uma população muito ancestral na Eurásia e chegaram a África. Há milhões de anos.”

Com a “nova” espécie identificada, o número de espécies do género canídeo em todo o mundo, que inclui, entre outros animais, o cão e a raposa, passa de 35 para 36. O lobo-dourado-africano está próximo, evolutivamente, de outras quatro espécies. São elas o coiote (Canis latrans), que existe nos Estados Unidos, o lobo-etíope (Canis simensis), uma espécie ameaçada que se espalha pela Etiópia e Eritreia, o chacal-dourado (Canis aureus) e o lobo-cinzento (Canis lupus). Entre todas estas cinco espécies haveria um antepassado comum, há cerca de três milhões de anos.

O chacal-dourado da Eurásia é o que mais difere dos outros quatro canídeos, pelo que se pensa ter sido o primeiro a iniciar a divergência, ou seja, a primeira espécie a evoluir a partir do antepassado comum. Segue-se o lobo-etíope, depois o lobo-africano-dourado, a espécie agora identificada, e por último o coiote e o lobo-cinzento.

Dentro da espécie do lobo-dourado-africano, os cientistas verificaram ainda algumas variações entre as populações do Norte e Leste de África. “É importante percebermos que os animais da mesma espécie não são todos iguais, basta pensarmos na espécie humana”, diz Raquel Godinho. “O lobo-dourado-africano do Leste de África é mais próximo, morfologicamente, do chacal-dourado da Eurásia por ser mais pequeno do que o lobo-africano do Norte, mas ambos têm dentição que os aproxima do lobo-cinzento.”

Relatos ocasionais dos mais atentos ou entusiastas afirmam existir diferenças morfológicas dentro da população dos lobos-dourados do Norte de África. “Os nossos dados provam que são todos semelhantes, mas, uma vez que existem relatos dos habitantes daquela zona, fica-nos a curiosidade para uma segunda investigação”, diz Raquel Godinho.

Os cientistas ponderam investir num futuro estudo a realizar no Norte de África, que terá como objectivo perceber se existem duas formas da mesma espécie no local. Klaus-Peter Koepfli faz alusão ao desafio constante que os investigadores das ciências naturais encontram: “Mesmo entre espécies muito bem conhecidas e dispersas, tal como o chacal-dourado, há o potencial de descobrir biodiversidade escondida.” 

fonte: Público


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