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Homem do Gelo poderá ter tido uma gastrite quando foi assassinado

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Dois elementos da equipa a estudar a múmia em 2010 MARION LAFOGLER/EURAC


Reconstituição em 3D do Homem do Gelo ADRIE E ALFONS KENNIS/A. OCHSENREITER/MUSEU DE ARQUEOLOGIA DO TIROL DO SUL


O Homem do Gelo MARION LAFOGLER/EURAC

A análise genética dos micróbios gástricos de Ötzi, a célebre múmia com 5300 anos descoberta em 1991 num glaciar nos Alpes, revela a presença de uma bactéria responsável por doenças estomacais e dá novas pistas sobre as migrações humanas na pré-história.

Uma equipa internacional de cientistas detectou e extraiu, do estômago do chamado Homem do Gelo, o ADN de uma bactéria que hoje infecta cerca de metade da população mundial e é responsável por gastrites, úlceras e até cancros. E mais: a sequenciação integral desse ADN antigo revelou algo de imprevisto sobre a história das migrações pré-históricas humanas. Os resultados foram publicados na edição desta sexta-feira da revista Science.

Ötzi viveu na Idade do Cobre e morreu assassinado nos Alpes italianos, muito perto da fronteira austríaca, há cerca de 5300 anos. Em 1991, foi descoberto num glaciar, mumificado pelo frio e em perfeito estado de conservação. Desde então, o seu corpo e indumentária já revelaram um manancial de informação sobre a vida quotidiana dos europeus daquela época.

Agora, Frank Maixner e Albert Zink, do Instituto das Múmias e do Homem do Gelo na Academia Europeia de Bolzano (EURAC) em Itália – com colegas da Alemanha, Áustria, África do Sul e Estados Unidos –, analisaram geneticamente o conteúdo do estômago de Ötzi. Descobriram assim que, no dia em ele que foi morto – ao que tudo indica, na sequência de uma ferida de seta e de um golpe na cabeça infligidos por outra(s) pessoa(s) –, talvez estivesse a sentir-se, ainda por cima, maldisposto e com dores devido a uma gastrite.

Mais precisamente, os cientistas conseguiram detectar, no estômago deste homem pré-histórico, o ADN característico das bactérias da espécie Helicobacter pylori.

Porém, a tarefa que consistiu em extrair da múmia o seu “microbioma” (conjunto de genes bacterianos) gástrico não foi fácil. Isto porque, como a mucosa que cobria a parede do estômago de Ötzi quando era vivo não foi preservada, não podiam recolher uma amostra desse tecido para realizar uma biópsia como as que hoje os gastroenterologistas fazem durante as endoscopias.

Os autores acabaram por encontrar uma forma de contornar o problema. “Tudo se resolveu quando tivemos a ideia de extrair a totalidade do ADN do conteúdo gástrico” de Ötzi, explica Maixner, citado num comunicado do EURAC. “Depois de termos conseguido fazer isso, fomos capazes de separar as várias sequências genéticas da bactéria e de reconstituir um genoma deHelicobacter pylori com 5300 anos.”

Os cientistas descobriram então que o Homem do Gelo estava infectado por uma estirpe da bactéria potencialmente virulenta. E não só: quando analisaram as proteínas presentes no seu estômago, tornou-se também claro que o sistema imunitário de Ötzi já estava a reagir à infecção. “No total, 22 proteínas observadas no estômago do Homem do Gelo são sobretudo expressas nos neutrófilos [um tipo de glóbulo branco do sangue] e estão implicadas na resposta inflamatória do hospedeiro [à bactéria]", escrevem os autores na Science. 

Não é possível dizer com certeza se Ötzi estaria mesmo doente na altura da sua morte, acrescentam, mas somente que existiam as condições para isso acontecer.

Contudo, a história contada pelos genes da bactéria Helicobacterdo estômago de Ötzi ainda reservava uma surpresa: a configuração genética do micróbio não correspondia ao grupo de estirpes que os autores esperavam encontrar num europeu da Idade do Cobre.

“Estávamos à espera de encontrar [o mesmo tipo de] Helicobacterque afecta os europeus de hoje”, explica o co-autor Thomas Rattei, da Universidade de Viena (Aústria), no mesmo comunicado. “Mas o que encontrámos foi [um tipo] que actualmente é sobretudo observado na Ásia Central e do Sul.”

Pensa-se que havia inicialmente dois tipos de estirpes deHelicobacter, um africano e um asiático, e que, a dada altura, eles se recombinaram para dar origem às estirpes europeias actuais. E como as estirpes dos europeus de hoje são muito mais próximas das estirpes africanas do que das asiáticas, supunha-se até aqui que os humanos do Neolítico já eram portadores desse tipo híbrido. Mas o caso de Ötzi, cuja bactéria quase não tem vestígios de estirpes africanas, veio agora mostrar que isso nem sempre era assim.

O resultado é importante para perceber a história humana, uma vez que a história das bactérias que infectam os humanos está estreitamente ligada às migrações desses seus hospedeiros. E se Ötzi for de facto representativo da população daquela época na sua região da Europa, esta descoberta introduz mais uma “reviravolta” no complexo percurso da espécie humana após a sua saída de África, há uns 60.000 anos.

“Isto bate certo com estudos recentes de arqueologia e de ADN antigos, que sugerem que houve mudanças demográficas drásticas pouco depois do tempo de Ötzi, incluindo ondas migratórias maciças e um crescimento substancial da população", disse àScience o co-autor Yoshan Moodley, da Universidade de Venda (África do Sul). "Estes e outros fluxos ulteriores foram claramente acompanhados da chegada de novas estirpes de H. pylori, que se recombinaram com as que já existiam para dar origem à população europeia moderna da bactéria", acrescenta.

“A recombinação dos dois tipos de Helicobacter poderá só ter acontecido depois da era de Ötzi, o que mostra que a história da povoação humana da Europa é muito mais complexa do que pensávamos”, resume Maixner.

fonte: Público


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