Três crânios humanos com 31.000 anos encontrados na República Checa MARTIN FROUZ E JIRÍ SVOBODA
Ilustração de um humano moderno na Idade do Gelo STEFANO RICCI
Genomas de 51 humanos que viveram entre há 45.000 e 7000 anos mostram uma sucessão de migrações e mudanças nas populações europeias. Durante esse tempo, o ADN dos neandertais foi sendo perdido.
Os humanos anatomicamente modernos (a nossa própria espécie) chegaram à Europa há cerca de 45.000 anos. Os vestígios arqueológicos que foram sendo descobertos desde o século XIX revelaram as culturas materiais das populações europeias que surgiram nos milénios seguintes, mas não deram muitas indicações sobre as migrações no continente. Tudo mudou com a sequenciação genómica, que permitiu analisar o parentesco de humanos que viveram em épocas e regiões diferentes.
Agora, uma análise do ADN de 51 esqueletos mostra que os humanos de há 7000 não são descendentes da população europeia fundadora. Ao longo destes milhares de anos, o início e o fim da Idade do Gelo terá determinado o desaparecimento dos humanos do Norte da Europa e depois o regresso a esse território, revela um estudo
publicado nesta segunda-feira no site da revista científica Nature.
Até agora, só tinham sido sequenciados quatro genomas de humanos que viveram na Europa entre há 45.000 e 7000 anos. O novo estudo possibilita uma análise muito mais refinada deste período. “Tentar representar um período tão vasto da história da Europa com apenas quatro amostras é como tentar fazer o resumo de um filme a partir de quatro imagens. Com 51 amostras, tudo muda. Podemos agora seguir um arco narrativo e obter um sentido da dinâmica das mudanças que ocorreram ao longo do tempo”, diz o investigador David Reich, do Instituto Médico Howard Hughes, em Boston, nos Estados Unidos, e um dos líderes da investigação que contou com várias dezenas de cientistas, incluindo o português Daniel Fernandes.
“Vemos uma história que não é menos complicada do que aquela que aconteceu de há 7000 anos para cá, com vários episódios em que a população foi substituída e a migração ocorreu numa escala vasta, numa altura em que o clima mudou de uma forma dramática”, acrescenta David Reich, citado num comunicado daquela instituição.
Durante esta altura, a Terra viveu a última Idade do Gelo, quando os glaciares atingiram a sua área máxima, entre há 25.000 e 19.000 anos, alcançando o Norte de França. Os humanos caçavam, pescavam, apanhavam alimentos na natureza, como bagas e cogumelos, produziam utensílios para a caça, fabricavam vestuário e deixaram arte rupestre em locais espalhados pela Europa, incluindo em Portugal, no Vale do Côa. Tirando dois locais arqueológicos, o ADN analisado pertence a esqueletos de culturas humanas que ainda não tinham agricultura, que definiu o início do Neolítico, há cerca de 10.000 anos.
Os cientistas analisaram os genomas de humanos cujas ossadas foram encontradas em Espanha (incluindo na gruta El Mirón, na Cantábria, onde recentemente se descobriu a
Senhora de Vermelho, um esqueleto de uma mulher com 19.000), França, Luxemburgo, Bélgica, Itália, Suíça, Áustria, Alemanha, República Checa, Hungria, Rússia e Roménia.
Do sul para o norte, de novo
Uma das principais descobertas é que os genomas mais antigos, de humanos de há 39.000 (um deles encontrado na Roménia) e de há 45.000 anos (e outro na Rússia) não deixaram descendência nas populações europeias mais recentes. Só os humanos que viveram mais recentemente – há 35.000 anos, na Bélgica – é que têm descendentes, mostrando que as primeiras populações que chegaram à Europa foram depois substituídas.
Os descendentes desta população da Bélgica encontravam-se em El Mirón há cerca de 19.000 anos, após o período máximo da Idade do Gelo. Mais tarde, com a regressão dos glaciares, estas populações humanas voltaram a latitudes mais altas na Europa, mas misturam-se também com populações vindas do Sudeste Europeu.
“Este trabalho veio aumentar exponencialmente a quantidade de informação genética disponível para este período, revelando importantes movimentos migratórios previamente desconhecidos, incluindo ligações ao Próximo Oriente antes da expansão da agricultura”, explica ao PÚBLICO Daniel Fernandes, que está na Escola de Arqueologia e Instituto da Terra, da College University de Dublin, na Irlanda. “O nosso papel em Dublin foi a contribuição com algumas amostras”, disse o cientista.
Os cientistas também analisaram a quantidade de ADN neandertal (espécie que se extinguiu há 28.000 anos) nos genomas dos humanos modernos, dado que se estima ter havido cruzamentos entre as duas espécies há cerca de 60.000 anos. Nos últimos meses, alguns estudos sugeriram que o ADN neandertal pode ter
efeitos negativos na saúde da nossa espécie e que o cruzamento entre as duas espécies
nem sempre resultou em descendência viável. O novo artigo parece reforçar esta ideia, mostrando que a selecção natural está a trabalhar contra o ADN dos neandertais: enquanto o ADN de humano moderno de há 45.000 anos continha entre 4 e 5% de ADN neandertal, o mais recente tinha apenas cerca de 2%. “O ADN de neandertal é ligeiramente tóxico para os humanos modernos”, afirma David Reich.
Uma outra conclusão resultou da comparação entre o parentesco genético de populações e a cultura material. As famosas esculturas femininas denominadas "figuras de vénus" que tanto foram encontradas na Sibéria, associadas a vestígios com cerca de 24.000 anos, como na Europa Central, associadas a vestígios entre há 25.000 e 30.000 anos, pertencem a populações distintas a nível genético. No artigo, os autores defendem “que se a similaridade [das figuras] não é uma coincidência, então estas reflectem uma difusão de ideias e não de pessoas”.